segunda-feira, 29 de agosto de 2016

ESPLENDOR no Vórtice Fantástico

Esplendor no Vórtice Fantástico

201608272359P7 — 20.505 D.V.

“Se as estrelas aparecessem apenas por uma noite a cada mil anos, como os homens haveriam de crer e adorar, e preservar por muitas gerações a lembrança da cidade de Deus!”
(Ralph Waldo Emerson, trecho do poema que teria inspirado John Campbell a sugerir que Asimov escrevesse “Nightfall”.)[1]

Neste último sábado de agosto, o segmento carioca do Vórtice Fantástico se debruçou sobre os trabalhos previamente selecionados de dois autores brasileiros para leitura crítica: a coletânea de horror O Vilarejo (Objetiva, 2015) de Raphael Montes e o romance de ficção científica Esplendor (Draco, 2016) de Alexey Dodsworth.
À semelhança do que ocorreu nesta mesma época no ano passado, quando fui convidado para comparecer ao Vórtice Fantástico, por conta da escolha de meu romance de história alternativa Aventuras do Vampiro de Palmares (Draco, 2014) no mês do autor brasileiro, aproveitando a janela de oportunidade da presença de Alexey no Brasil — pois ele está atualmente cursando doutorado em Veneza — entramos em contato com ele para convidá-lo para o mês do autor brasileiro 2016.
Inicialmente pensamos em escolher seu trabalho de estreia, Dezoito de Escorpião (Novo Século, 2014), vencedor do Argos 2015 na categoria melhor romance, mas, à época da seleção de trabalhos, os participantes do Vórtice esbarraram com dificuldades em adquirir o exemplar pela edição da Nova Século.  Daí, escolhemos o Esplendor, ambientado no mesmo universo ficcional e que, mais do que uma continuação do anterior, funciona como uma espécie de romance geminado daquele, uma vez que os dois trabalhos compartilham personagens e, em alguns casos, cenas, focadas sob ângulos distintos nos dois romances.
Renata Aquino moderou a análise informal de O Vilarejo e eu fiz o mesmo em relação ao Esplendor.
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A inspiração de primeira ordem do Esplendor é a noveleta clássica de Isaac Asimov, “O Cair da Noite” (1941), onde o autor descreve as últimas horas de uma civilização de alienígenas, supostamente humanoides, que floresce no planeta Lagash, mundo biótico banhado pela luz de seis estrelas, onde não há noite e, portanto, os habitantes jamais experimentam momentos de escuridão.  O apocalipse cíclico atinge a civilização lagashiana a cada 2.049 anos, na ocasião em que o satélite invisível do planeta provoca um eclipse solar total da única estrela então acima da linha do horizonte.  O fenômeno apavorante da noite inaudita leva os nativos de Lagash à loucura e a civilização sucumbe, iniciando um novo ciclo.
A inspiração de segunda ordem de Alexey Dodsworth foi o romance O Cair da Noite (Record, 1990), de Robert Silverberg, escrito com consultoria de Asimov (que recebe os créditos de coautor tanto na edição original quanto na tradução brasileira de Ronaldo Sergio de Biasi), mas apenas publicado três anos e pouco após a morte do Bom Doutor.  Inteligente, Silverberg percebe que, passado meio século, o público leitor se tornou mais exigente e decerto não engolirá com tanta facilidade o fato de que um planeta alienígena, cujos habitantes, até onde se sabe, jamais estabeleceram contato com a humanidade, seja designado com o nome de uma cidade da antiga Suméria (Asimov provavelmente imaginou que seus leitores não dariam pela coisa...).  Daí, altera o nome do mundo biótico para “Kalgash” e também os nomes das estrelas do sistema sêxtuplo.  Asimov batizara apenas quatro delas: Alfa (o primário de Lagash, i.e, o astro ao redor do qual o planeta orbita), Beta, Gama e Delta.  Silverberg designa os seis astros: Onos (primário de Kalgash), Dovim, Trey, Patru, Tano e Sitha.[2]
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Combinei almoçar com Alexey no restaurante Mauá, que funciona no último piso do Museu de Arte do Rio (MAR), situado na Praça Mauá.  No entanto, a equipe de TV para a qual ele estava gravando uma entrevista sobre Transhumanismo atrasou um pouco e, a bem da cautela, transferimos o almoço para o Cedro do Líbano, restaurante de gastronomia árabe que funciona na Senhor dos Passos, bem próximo à Biblioteca Parque, onde o Vórtice Fantástico se reuniria.
Optamos por um prato do tipo, monte-você-mesmo, em que podíamos escolher os quatro componentes.  No meu caso foram: folhas de parreira recheadas, quibe na chapa, tabule e fatias de cebola frita cortadas bem finas (certeza absoluta de que existe uma designação em árabe para o componente em questão).  Alexey pediu o mesmo, só que com cafta de frango em lugar do quibe.  Regamos a refeição com o tinto chileno Oops! Carmenère, bastante adequado.
Enquanto esperávamos a comida chegar, presenteei Alexey com exemplares autografados de meus romances A Guardiã da Memória (Draco, 2011) e Estranhos no Paraíso (Draco, 2015).  Ele retribuiu com um exemplar autografado de Esplendor, que eu só possuía em edição e-book.
Alexey me descreveu a gênese comum dos romances Esplendor e Dezoito de Escorpião, que surgiu num insight durante uma aula de astronomia na USP.  Conversamos sobre nossas formações acadêmicas correlatas.  Ele está iniciando um doutorado em filosofia na Itália na área de Transhumanismo, mas também se interessa bastante pelas pesquisas nas áreas de SETI e Astrobiologia.  Contou-me ainda de suas experiências nacionais e internacionais como assessor do Ministro da Educação, durante o mandato de Renato Janine Ribeiro, intelectual que chegou a proferir uma palestra versando sobre o futuro recheada de tópicos de ficção científica, naturalmente redigida por nosso amigo Alexey.  Falou da sua amizade com meu colega de graduação na Astronomia na UFRJ (Observatório do Valongo), Gustavo Porto de Mello e da experiência de usar esse amigo comum como personagem literário.  Falou ainda que é amigo do presidente do Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC), Clinton Davisson, desde a adolescência de ambos.
Após o lauto repasto na gastronomia árabe, seguimos a pé até a Biblioteca Parque.  Fomos os primeiros a chegar, mas, pouco tempo depois, a galera começou a aparecer.  Embora pouco concorrida, com as ausências marcantes de Thaís Cavalcanti, Daniel Faleiro e Cláudio Manoel, a reunião foi um bocado divertida.  Afinal, não é todo dia que temos o privilégio de dialogar com um autor para nos ajudar a destrinchar seus processos de criação literária.
Renata abriu os trabalhos moderando a análise da coletânea O Vilarejo, de Raphael Montes.  Nosso consenso foi que a virtude principal desse trabalho não consiste nos contos em si, cujos enredos são, até certo ponto, previsíveis e banais.  O tchã reside justamente na concatenação dos contos entre si para montar o livro, que pode ser tranquilamente lido como um romance fix-up, ou, talvez, face ao tamanho reduzido, uma novela fix-up.  Outra crítica, feita tanto por mim quanto pela Mariana Rios, foi sobre a ambientação um tanto anêmica em termos de Rússia tsarista, a nosso ver fraca e pouco convincente.  Embora não tenha lido o fix-up, Alexey participou do debate, tecendo comentários pertinentes sobre o processo criativos dos escritores de maneira geral.

Alexey Dodsworth no Vórtice Fantástico RJ.



Em seguida, moderei a discussão sobre Esplendor.  Como era inevitável, falamos um bocado da noveleta de Asimov, do romance de Silverberg e, obviamente, de Dezoito de Escorpião.  Renata indagou se esse último romance era uma prequel do trabalho analisado e o autor confirmou minha tese de que se tratavam de romances geminados.  Comentamos amiúde as especificidades de Esplendor em relação aos textos dos autores anglo-saxões que o precederam: a adoção de humanoides negros e fotossintéticos como personagens; o emprego de nomes, topônimos e conceitos da cultura iorubá; a questão da ausência completa de privacidade na sociedade exibida no romance; a tirania exercida pela polícia do pensamento; as dificuldades do demiurgo-aprendiz que já havia aparecido sob uma encarnação diversa no trabalho anterior; o artifício do personagem bonzinho que se transforma em arquivilão e muito mais.
Minha conclusão da leitura de Esplendor e Dezoito de Escorpião é que, guardada a originalidade impactante da noveleta de Asimov e a exploração fiel e complementar do romance de Silverberg, Alexey Dodsworth inovou de forma inteligente e poderosa, além de também ser original e impactante a seu modo, insuflando alma nova nessa temática clássica da ficção científica.
Ao fim dessa reunião na parte descoberta da Biblioteca Parque, por volta das 18h00, alguns de nós seguimos para a casa histórica simpática de Santa Teresa, onde se deu o lançamento carioca dos dois romances de Alexey e fomos apresentados ao Dezoito de Escorpião já em sua edição da Draco.
Presentes nos lançamentos, geminados como os romances, estivemos eu, Renata Aquino e Ricardo França, já incorporado ao segmento carioca do Vórtice Fantástico.  Conversamos sobre a história da ficção científica brasileira, os velhos tempos da edição brasileira da Asimov’s, as perspectivas passadas, presentes e futuras em termos de carreira na área dos estudos de ficção científica e outros tantos que tais, enquanto degustávamos um guacamole saboroso, regado por diversas taças de espumante, algumas com pingos de chocolate belga em seu interior.

GL-R e Alexey Dodsworth no lançamento de Esplendor.


Por volta das 20h30 regressei para casa de UBER.  Depois de ler uma matéria na semana passada, segundo a qual os motoristas associados ao aplicativo não estariam pegando passageiros em Santa Teresa, preocupei-me e cogitei a hipótese de recorrer ao Easy Taxi.  De fato, o primeiro motorista solicitado declinou no meio da viagem, provavelmente, ao constatar para onde se dirigia.  Porém, o segundo aceitou a missão, conduzindo-me até em casa com segurança e cortesia habituais.
Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 27 de agosto de 2016 (sábado).


Participantes:
Alexey Dodsworth
Erick Massoto
Gerson Lodi-Ribeiro
Mariana Rio
Renata Aquino
Ricardo França
Stella Rosemberg




[1].  Dizem que Campbell, editor da Astounding Stories, teria discordado à citação de Emerson, retrucando: “Acho que os homens enlouqueceriam.”
[2].  No romance de Silverberg, Kalgash orbita ao redor de Onos, uma anã amarela similar ao Sol.  Por sua vez, Onos orbita em torno do sistema binário constituído por Trey e Patru, estrelas de tipo espectral A ou F, referidas como “brancas”.  O sistema sêxtuplo possui ainda outro subsistema binário, formado por Tano e Sitha, duas estrelas de tipo espectral A, B ou O, referidas como “azuis”, e pela anã vermelha Dovim.  Kalgash dista 1,2 unidade astronômica (dez minutos-luz) de Onos.  Onos dista 13,4 U.A. (110 minutos-luz) da binária Tano-Sitha.  Mais detalhes sobre a mecânica orbital desse sistema sêxtuplo podem ser conferidos no artigo “Nightfall: Can Kalgash Exist?”, de Smaran Deshmukh & Jayant Murphy (PDF disponível para download).  Esses autores creem que os quatro componentes das duas binárias possam ser anãs brancas.  Afirmam também que o eclipse total de Dovim poderia dar-se essencialmente como Silverberg o descreveu.  Porém, concluem que o sistema sêxtuplo não seria gravitacionalmente estável: seus componentes se afastariam uns dos outros em pouco tempo.